Obras do Mutirão União da Juta
Notícia de 15/9/2019
As transformações no modelo de produção de construção civil propostas historicamente por movimentos de moradia nos Mutirões Autogeridos no Brasil, em relação aos modos de produção para o mercado, não se limitam à mão de obra responsável por empreender a construção, isto é, não se trata apenas de uma troca de trabalho assalariado por trabalho mutirante desmercantilizado.
As inovações passam por diversas esferas, desde o projeto arquitetônico – pensado a partir de uma perspectiva coletiva e enquanto bem comum que coloca o mutirante como “autor, produtor e futuro usuário” -, até o modo de produção no qual, diferente do modelo tradicional, “não é possível aumentar a produtividade através da ampliação da exploração, com precarização, horas extras, demissões, mas somente através da invenção de novos procedimentos e técnicas construtivas”.
Esse tema é assunto de discussão para muitos arquitetos, tanto no campo teórico, quanto na experimentação e prática, onde a obra passa a ser palco de um esforço pela racionalização, otimização e horizontalidade nos processos.
Processo de projeto junto aos futuros moradores
A postura do arquiteto em relação ao cliente é uma das facetas da interferência de um outro modelo produtivo em relação àquele já estabelecido e seus agentes tradicionais. No caso dos mutirões, onde existe a necessidade de pensar e desenhar frente a frente com a população, de se aproximar de outras classes sociais, lidar com um confronto de referências entre o técnico e o mutirante, surge a necessidade de desenvolver algumas metodologias de discussão de projetos coletivos. Essa função é parte das atribuições dos arquitetos que trabalham em assessorias técnicas com projetos participativos.
Vista do Mutirão Florestan Fernandes e José Maria Amaral
A coletivização do processo, pretendida por este modo de produção, se inicia nas etapas prévias à obra: na busca por terrenos disponíveis na cidade, na elaboração do projeto, desenvolvido a partir do diálogo com as assessorias técnicas e da apropriação do projeto pelos mutirantes; e, na sequência, após a conquista da terra, na organização das famílias beneficiárias em equipes (comissões) para a gestão e trabalho na obra.
Essas comissões costumam se organizar em três núcleos: execução dos trabalhos no canteiro (alvenaria, laje, argamassa, elétrica, hidráulica, carpintaria, ferragem e serralheria); administração (almoxarifado, comissão de compras e coordenação financeira); e apoio (enfermaria, segurança, prevenção de acidentes, cozinha comunitária, comunicação e eventos).
O modelo vigente de produção da construção civil apresenta uma discrepância em relação ao desenvolvimento industrial de outros setores, mantendo-se o processo manufatureiro, o que segundo a perspectiva de Sergio Ferro, arquiteto que se dedicou a refletir sobre as relações de trabalho no canteiro, trata-se de uma condição atrasada tecnologicamente e, ao mesmo tempo, contemporânea economicamente, vide o enorme fluxo de capital e mão de obra no setor.
A manutenção da manufatura no canteiro de obras, caracterizada pelo grande volume de mão de obra e pouco maquinário, atende à manutenção e/ou aprofundamento da acumulação capitalista, à medida que garante o maior lucro que os setores industriais avançados, fruto da exploração do trabalho humano e extração da mais-valia.
Outros ganhos interessantes são visíveis e recorrentes no processo de mutirões autogestionários. O protagonismo das mulheres no trabalho no canteiro e das comissões é notável desde a primeira aproximação com esse modo de produção. Configura-se ali um espaço de empoderamento muito forte, a partir da apropriação destas mulheres em relação a todos os aspectos e etapas da produção, em que a participação no mutirão se desdobra, na sequência, em lutas por autonomia em relação à opressão de gênero e a discussão da divisão sexual do trabalho.
Diante da produção hegemônica da construção civil, predominantemente dominada pela mão de obra masculina, a presença das mulheres nos mutirões ganha especial força.
Mutirantes no Centro Comunitário da Juta
Além disso, do ponto de vista técnico, os projetos realizados sob regime de mutirão ligados aos movimentos de moradia também representaram historicamente a possibilidade de empregar técnicas construtivas inovadoras que se distanciam das formas tradicionais de construção voltadas à habitação de interesse social. A redução de custos e otimização dos processos, característica desse regime, abrem possibilidades para investimento e experimentação construtiva em muitos casos, o que reitera a hipótese de que se trata de um tipo de obra que tem grande potencial de aproximação com os processos industriais.
Vista do mutirão Paulo Freire
Fonte: Archdaily